26 fevereiro 2012

Cabeças Cortadas


Emergiu do século XVIII, reverberando pelo século XIX, a Frenologia. Baseava-se em uma proposta de se buscar identificar elementos do caráter de uma pessoa através da análise de relevos da sua cabeça. O maior expoente do início dessa proposta foi Franz Joseph Gall.

Modelo frenológico

Porém, o século XIX ainda a elaboraria mais e legou ao século XX, associando-a à Fisiognomia, isto é, a busca de elementos da personalidade das pessoas através dos seus traços fisionômicos.
Chegou-se, enfim a uma proposta área da Ciência, pendendo entre Medicina Forense, Medicina Legal e Antropologia Física. Era a "Antropologia Patológica", que se propunha a localizar e provar que as características de uma pessoa estavam impressas e expressas no formato do crânio, suas feições, associadas e entendidas como justificadas por outros elementos como questões raciais.
Desta maneira, o dito "caráter" de uma pessoa já viria marcado desde o seu nascimento. Haveria uma "natureza" de cada indivíduo materializada fisicamente.
Aquele que mais influenciou nesta via foi o médico Cesare Lombroso, que, em 1876 publicou "O Homem Delinqüente".
Modelos de Lombroso

No Brasil, o expoente dessa perspectiva foi Raimundo Nina Rodrigues, nascido em Vargem Grande, Piauí, em 1862, com curso de Medicina em Salvador e Rio de Janeiro.
Estabelecido em Salvador, deu aulas na Faculdade de Medicina. Seu trabalho girou em torno de uma "Antropologia Patológica".
Seus trabalho detém um cunho marcantemente racista, com destaque para ataques às miscigenações. Em sua visão, os miscigenados seriam aqueles que mais mostrariam características tendendo à criminalidade.

Nina Rodrigues


Daí ter se empenhado em conseguir e manter as cabeças de Lucas de Feira e Antônio Conselheiro.
Nina Rodrigues faleceu em Paris, em 1906, sendo inumado, finalmente, em Salvador, Bahia.
Em contraposição a essa linha, elevaram-se vozes, cujo resplandecer mais claro apareceu nas linhas de Euclydes da Cunha. Este, vindo acompanhar o massacre da Rebelião Conselheirista de Canudos, objetivava flagrar confirmações da posição de Nina Rodrigues. Entretanto, o que testemunhou colocou-o na senda contrária.
Daí, em vez de estropiados fracos, viu-se obrigado a reconhecer:
"- O Sertanejo é, antes de tudo, um forte!"
Entretanto, adentrado o século XX, a linha de Nina Rodrigues seguiu firme, através de vários discípulos. Evidência clara da linha foi ter sido trazida a Salvador a cabeça de Antônio Conselheiro para a busca de "sinais de demência".
Correio de Noticias, em 23 de outubro de 1897.

Estabeleceu uma forte escola assentada nas suas propostas.
Numa matéria de 5 de outubro de 1927, que apareceu no “Diario da Bahia”, está bem clara a tendência momentânea de se utilizar de elementos expressos especialmente na morfologia craniana para explicar ações humanas.
A matéria aparecia com a chamada "UM CRIME QUE IMPRESSIONOU". Nela, reportava-se o assassinato chamado "Tragedia da Avenida Oceânica", no qual foi assassinada uma mulher de nome Sylvana por seu companheiro Antonio Pereira.
Aparece na matéria:

"O prof. Estacio de Lima reconstitue a scena brutal e estuda o typo de Antonio Pereira


Estácio de Lima

– Então, doutor, acha possivel a reconstituição do crime e seus factores?
Dentro de certos limites, julgo de facto que sim. Não creio justas razões as tivesse o triste marido homicida. Entretanto escravo que era do vicio, o pobre homem, entregue a inexorabilidade do alcoolismo, tinha que ser, como foi, protagonista de uma terrivel catastrophe moral... Debil organização nervosa, mestiço, preso, assim, a uma subraça transitoria e tão cheia de sombrias taras, luetico em pleno terciarismo, mais propicio terreno a explorações fataes, o malsinado veneno social não acharia. E nos ultimos cinco meses, como dizem, João bebia mais ainda, muito mais... Dahi certas modificações do caracter. Antes, grosseiro, magoando, até physicamente a esposa vinha, por ultimo, apresentando alternadas expansões de affecto e estupida brutalidade. Naturalmente, crescendo–lhe a excitabilidade nervosa, a par e passo, augmente a periculosidade de suas reações anti–sociaes. O factor é esse, escreva em sua gazêta: alcoolismo cerebral, evolvendo em organização de mestiço – nordestino, debilitado, por pezada herança morbida, alem das grandes doenças que lhe estiolavam as energias; tuberculose e syphile."

Cabeça de Antonio Pereira cortada para análise por Estácio de Lima
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Era esta a verve dominante na Academia quando o Cangaço crescia. Assim, naturalmente, aqueles cangaceiros abatidos mergulharam no lugar comum o "estudo das cabeças".
Com Estácio de Lima à frente, a "Antropologia Patológica", uma espécie de "evolução" da associação entre Fisiognomia e Frenologia se impunha.
O primeiro deles foi a do cangaceiro Gavião, que chegou a Salvador no início de 1930. Quando aprisionado, o cangaceiro Volta-Secca, tiveram os discípulos da proposta de Nina Rodrigues a oportunidade de realizar o estudo do seu crânio em vida. Procuraram sempre indícios da marginalidade e decadência.
Estudaram-se os crânios dos cangaceiros abatidos na Lagoa do Lino, no caso, Azulão, Canjica, Maria e Zabelê. Finalmente, estudaram-se os crânios dos cangaceiros abatidos em Angicos, em 1938.
Um estudioso que começou a se destacar, apontando o caminho da derrocada da Frenologia, foi Estácio de Lima. Nascido em Marechal Deodoro, em Alagoas, em 1897, cursando Medicina, acabou se tornando docente das Faculdades de Medicina e Direito da Universidade Federal da Bahia, antigo catedrático de Medicina Legal da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública da Universidade Católica de Salvador e da Faculdade Federal de Odontologia. Nesse caminho tratou de integrar a luta para desfazer a antiga linha de Nina Rodrigues.
Citado em algumas publicações como sendo Estácio de Lima, conforme indicado pelo estudioso do Cangaço Ivanildo Silveira, este que segura as cabeças é Charles Pitex.

Em sua visão, o meio, a Vida e a História são os elementos que influenciam diretamente na tecitura dos caráteres humanos.
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Como fruto do momento em que ainda se acreditava na Frenologia, os crânios de Lampeão e Maria Bonita foram estudados.
Abaixo o estudo dos seus crânios, conforme apareceu reproduzido na publicação:
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BEZERRA, João. “Como dei cabo de Lampeão.” Recife (Pernambuco): Fundação Joaquim Nabuco - Editora Massangana, 1983.
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O "estudo antropométrico" foi assinado pelo dr. Lages Filho, então diretor do Serviço Médico Legal de Alagoas.
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O resultado do estudo antropométrico da cabeça de Lampeão
Infelizmente o estado em que a cabeça chegou à morgue não permite um estudo acurado e minucioso à luz da antropometria criminal e da anatomia, pois atingida por um projétil de arma de fogo que atravessou o crânio saindo na região occiptal, fraturando o mandibular, o frontal, o parietal direito, o temporal direito e os ossos da base que ficaram reduzidos a múltiplos fragmentos. Todavia, podemos traçar-lhe o perfil antropológico: Pele pardo-amarelada, podendo-se classificá-lo como pertencente ao grupo dos “brasilianos xantodermos”, da classificação de Roquette Pinto: testa fugidia, cabelos negros, longos e arrumados em trança pendente; barba e bigode por fazer, de pelos lisos negros e falhos. Dolicocéflo, contrastando com os outros indivíduos do seu grupo étnico, em geral braquicéfalos. O perímetro cefálico é igual a 57 centímetros. diâmetro transversal máximo atinge 150 milímetros, índice encefálico 75. Sua face é de tamanho relativamente reduzido, impressionando à primeira observação as dimensões do mandibular pequeno e com os ramos horizontais a formar um ângulo reto no encontro dos ramos ascendentes, correspondentes. Assim, é o comprimento total do rosto de 170 milímetros, o comprimento total da face de 130 milímetros, o comprimento simples da face de 85 milímetros, o diâmetro gigomático ou transverso máximo da face, de 160 milímetros, índice facial da boca 53,12. Nariz reto, de ápice grosso e rombo, guardando ao dorso a impressão dos óculos, com altura máxima de 50 milímetros e largura máxima de 37 milímetros. O índice nasal transverso 64 milímetros, uma mesorrínia franca, lábios finos. Largura da boca 57 milímetros. Abóbada palatina ogival, dentes pequenos podendo-se enquadrá-los no grupo dos microdontias; orelhas assimétricas, havendo desigualdade manifesta no desenvolvimento das partes similares (orelha Blainville). O comprimento da orelha direita alcança sessenta e cinco milímetros. A largura da orelha direita é de 40 milímetros. comprimento da orelha esquerda 55 milímetros.
A largura da orelha esquerda é de 40 milímetros. Índice auricular de Topinar, tendo-se em conta as dimensões da orelha direita de 65 milímetros. Na face há visível, na região masseterina direita, uma pigmentação escura arredondada, medindo três milímetros de diâmetro, em nervus congênito. O olho direito apresenta um leucoma, atingindo toda a córnea. em resumo; embora presentes alguns estigmas físicos na cabeça de Lampeão, não surpreendi um paralelismo rigoroso entre os caracteres somáticos da degenerescência, revelados pela mesma e a figura moral do bandido. assim, apenas verifiquei como índices físicos de degenerescência as anomalias das orelhas, denunciadas por uma assimetria chocante, a abóbada palatina ogival e a microdontia. Faltam as deformações cranianas, o prognatismo das maxilas e outros sinais aos quais Lombroso tanta importância emprestava para a caracterização do criminoso nato. Todavia, nem por isso os dados anatômicos e antropométricos assinalados perdem a sua valia pelas sugestões que oferecem na apreciação da natureza delinqüencial de Lampeão.

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Resultado do exame da cabeça de Maria Bonita
A cabeça de Maria Bonita deu entrada às 10 horas da noite de 31 de julho de 1938 no Serviço Médico-Legal do estado de Alagoas em mau estado de conservação, razão por que não foi retirado o encéfalo, já reduzido a uma pasta esbranquiçada e amorfa que se escoava pelo orifício occiptal. as partes moles infiltradas não permitiram fossem melhor apreciados os traços fisionômicos da companheira de Lampeão, os quais, aliás, não pareciam desmentir o apelido que lhe deram. Aparentava ser uma mulher de trinta a trinta e cinco anos de idade. À primeira impressão, o que mais prende a atenção é vêem vê-la é a sua testa alta e de todo vertical. cabelos negros, longos, finos e lisos, arrumados em tranças pendentes. Tez morena clara. Pode ser incluída no grupo dos brasileiros xantodermos da classificação de Roquette Pinto, o perímetro encefálico é de 57 milímetros. O diâmetro ântero-posterior máximo é de 195 centímetros. O diâmetro transversal máximo mede 150 milímetros. O índice cefálico, 33. Portanto, braquicéfala. O comprimento total do rosto alcança 190 milímetros. O comprimento total da face é de 120 milímetros. O comprimento simples da face, 153 milímetros. Índice facial da boca, 47,0. Lábios grossos, sendo a largura da cavidade bucal de 45 centímetros. Dentes pequenos, bem plantados e em excelente estado de conservação. Olhos castanhos escuros.
São estes os principais elementos colhidos, traçando-se o perfil antropológico de Maria Bonita. Não denunciam eles a existência de quaisquer estigmas de degenerescência ou sinais atávicos. Na busca de sua constituição delinqüencial muito mais importância teria o estudo psicológico que permitiria pôr em relevo os caracteres fundamentais de sua personalidade.
Em verdade, uma conclusão definitiva e segura só poderia ser tirada da apreciação físico-psíquica e biográfica da vítima, único meio capaz de revelar suas tendências ciminosas, mesmo se despertadas pela paixão e pelo amor.

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