CAVALOS DO CÃO – Algumas Palavras
Aqui vão
algumas considerações ao sabor de terminar a leitura de “Cangaço na Bahia
– Cavalos do Cão”, do prof. Rubens Antonio da Silva Filho. À semelhança do que fiz com o trabalho “Cangaço
na Bahia – Canção Agalopada”, algumas palavras para a sequência, a
segunda parte desta obra que, especificamente, dá conta do Cangaço e de seus
desdobramentos em terras baianas de 1930 ao início dos anos 40.
Mesmo correndo
o risco de ser repetitivo, devo mencionar o encanto que a excelência da
composição gráfica causa ao leitor. Dá
gosto abrir; passar à vista as imagens... manusear. A composição das suas 536
páginas enfeixando mapas, fotografias (muitas delas inéditas, outras tratadas e
melhoradas), além das belíssimas capa e contracapa, com imagens colorizadas de
Lampião e seu bando, pinçadas do extenso e primoroso trabalho artístico do
autor. A manutenção das referências ao pé da página e a grafia original dos
textos extraídos de documentos e jornais atestam a veracidade das informações,
tais quais foram colhidas da fonte, sem eventuais “atualizações” linguísticas
que poderiam comprometer o sentido original do texto. Ainda por cima, ao final
dos capítulos, as assinaturas (algumas obtidas com grande sacrifício pelo
autor) dos personagens citados ou perfilados, como a afiançar a veracidade do
texto. Rubens Antonio não poderia deixar por menos: afinal, é a coroação do
esforço de 20 anos de pesquisa, criação e muito trabalho.
O autor fez
interessante divisão da narrativa em “meio-dia”, “tarde” e “crepúsculo”,
como a evocar a sensação de um dia que nunca acaba - “o mais longo dos dias”,
vivido com sangue, suor e lágrimas pelos que sofreram a violência insana do
Cangaço. A impressão de que esse fenômeno sangrento durou mais do deveria paira
nas páginas do livro, como a reforçar que o autor conseguiu seu intento ao nos
trazer, com cores vivas, uma narrativa coerente com a verdade.
Ao debruçar-me
sobre “Cavalos do Cão”, veio-me a lembrança o filme “Os Imperdoáveis”
(Unforgiven), de Clint Eastwood, que retratou com honestidade um velho
oeste completamente desmistificado, onde imperavam a violência gratuita, a
bebedeira, a desordem e as mentiras... uma paisagem bem distante do que
geralmente se vê nos filmes roliudianos, com “Jesses James”
cavalheirescos, a guisa de caricatura glamourizada dos reais personagens
históricos. Foi com este sentimento que percebi o livro em epígrafe: a História
edificada na busca dos fatos e sua comprovação, seja documental ou por
registros da memória oral. Entrevistas carregadas de emoção pungente,
documentos, jornais, revistas, mapas atualizados e bastante ilustrativos. Não
há ilações nem fantasias. Tudo é fundamentado, mesmo havendo discordância com
versões clássicas anteriores de episódios conhecidos ou não. O que importou ao
autor, a meu ver, foi reduzir o espaço dentro do qual a verdade está à espera.
E aqui vem um pensamento de Arthur Conan Doyle: “excluindo-se o impossível,
o que sobra, ainda que improvável, deve ser a verdade”.
A exemplo do
primeiro volume, os capítulos são amalgamados com letras e versos de canções do
universo musical nordestino, notadamente as canções de Zé Ramalho, Elba
Ramalho, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, dentre outros ícones representativos
da musicalidade que se associa ao “cangaço” como elemento artístico e cultural.
No correr dos anos 30, “um cavaleiro do diabo corre atrás do seu destino”,
diz a letra da canção que encima o livro, e, também nomeia um dos capítulos
mais intensos da obra, onde o autor, ao rastejar o galope do Átila dos
sertões, esbarra no ferreteamento cruel de muitas mulheres; nos incontáveis
crimes bárbaros de que foram vítimas os pobres sertanejos daqueles tempos
brabos; e os expõe de maneira crua, tal como foram registrados pelas diversas
fontes. O livro, ao tempo em que se mostra como um libelo de acusação aos
cangaceiros, se faz de importante apologia ao resgate das vítimas sofridas,
cujos gritos surdos não foram ouvidos, ou, na melhor das hipóteses,
preguiçosamente registrados em trabalhos precedentes que abordaram o tema. Esse
é um dos grandes méritos do “Cavalos do Cão”: trazer à superfície
o pranto das vítimas e de suas famílias, como a deixar sangrar um açude de
lágrimas há muto represado. Aqui trago as palavras de Catão: “A verdade é o
alicerce da autoridade”. É assim que o livro se impõe: um farol sobre as
injustiças e as arbitrariedades; o julgamento inevitável da História para
cangaceiros e volantes. Trago na memória o relato do suplício de Herculano
Borges, barbaramente morto por Corisco, e o pranto quase sussurrante de Dona
Ossanta e sua família. Eles têm, agora, neste resgate, a certeza da justa
exposição dos fatos, sem distorções. O que dizer do campo de extermínio pensado
por Liberato de Carvalho e realizado por Campos Menezes? Balmés disse que “o
poder sem moral converte-se em tirania. Não há maior tirania que a exercida em
nome da lei”. Há que se expor visceralmente o Cangaço e o combate a ele.
Não tenho como
apontar aqui um ponto alto do livro, pois poderia parecer injusto. A exemplo de
uma cordilheira, o conjunto é o que importa.
A “quase” expedição de Carlos Chevalier; a prisão de Volta Seca
(capítulo primoroso); a morte de Arvoredo; a impressionante “bestialização” de
Calais, que escravizou a moça Selvina; o périplo das “cabeças cortadas” de
Lampião e Maria até sua exumação em 2002; o fim melancólico de Corisco...
dentre outros. Há nas páginas 360 e 361 do livro a exposição em sequência de 6
mapas muito elucidativos, que retratam a involução do Cangaço na Bahia de 1928
a 1935 visualmente, de maneira clara e inequívoca. Estes mapas são
fundamentais, pois complementam o texto ao descortinar ao leitor uma
perspectiva de entendimento evolutivo pela percepção visual ampliada, do todo.
É precisamente
em 1931, onde há um ponto de inflexão, um marco na queda progressiva no vigor
do cangaço lampiônico de outrora: cada vez mais os cangaceiros se encolhem,
limitando sua área de atuação, numa asfixia lenta e constante, a culminar com a
expulsão de Lampião, na prática, das terras baianas, indo ele sucumbir em
Angico, Sergipe, em melancólico epílogo, no tão decantado 28 de julho de 1938.
Rubens Antonio vai além e persegue os rastros desse Cangaço ferido de morte,
estrebuchante, até o tiro de misericórdia dado por José Osório de Faria, o Zé
de Rufina, com a morte de Corisco, o “Diabo Loiro”, em maio de 1940. Este
oficial foi o mais eficiente matador de cangaceiros da polícia baiana. Sua
atuação e biografia são destaque no livro.
Uma coisa interessante, no que diz respeito ao
matador de Corisco, é exatamente o descompasso entre sua bem-sucedida campanha
como chefe de volante com a sua progressão com “freio-de-mão” puxado, como
oficial. Mesmo tendo no curriculum mais de uma dezena de cangaceiros mortos, e
ter matado Corisco no posto de 2° Tenente, recebe apenas uma “menção de
louvor”. O brioso Zé de Rufina, vejam vocês, conseguiu chegar a Tenente-Coronel
por antiguidade em 1962. O livro faz justiça ao empenho, inteligência e fiel
cumprimento de seu dever, inclusive com comportamento correto, sem excessos, em
relação aos sertanejos.
Minhas
excelentes impressões a respeito do Capitão João Facó, como secretário da
Polícia e Segurança Pública da Bahia, e da atuação humanizada do Capitão
Anníbal Vicente Ferreira, como comandante do destacamento no Nordeste do
Estado, na condução das entregas. Estes oficiais mostraram-se dignos da farda
que vestiam, cumprindo seu dever com consciência cívica e inteligência.
Bom, para
finalizar, gostaria de recordar as palavras do autor, Rubens Antonio: “eu
escrevi um livro que eu, como leitor, gostaria de ler”. Esta afirmação dá o
pano de fundo para um bom livro, pois Aristóteles dizia que “o prazer do
trabalho aperfeiçoa a obra”. Convido-vos, amigos, a mergulharem nas páginas
de “Cavalos do Cão”, pois é a oportunidade de, além do prazer de
contemplar um texto com excelente precisão vocabular e coerência, degustar
composição autêntica, vez que não foi contaminada com impressões processadas
por outros autores e pesquisadores. O livro é imprescindível para estudantes,
professores, pesquisadores que queiram ter à mão Arte, História (com H
maiúsculo), Jornalismo, Cartografia num trabalho que já ganhou o horizonte como
um dos melhores já feitos sobre o Cangaço e a sobre a recente história do
Brasil.
Leandro Cardoso
Fernandes
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