Desde algum
tempo que já esperava ter sob as vistas o trabalho do professor Rubens Antonio.
A expectativa, até certo ponto, fora gerada a partir das discussões e debates
sobre o tema Cangaço, nos diversos grupos pelas redes sociais afora. Pensava eu
que o contato inicial com seu trabalho havia sido ali. Engano meu: fora antes. Em
2017, visitei, em Salvador, uma exposição sobre Cangaço no Museu Náutico da
Bahia, onde a curadoria e as imagens retocadas e colorizadas ali expostas eram do
Rubens. Mesmo sem conhecê-lo naquela ocasião, pude antever o quilate do seu
trabalho e seu compromisso com a excelência na pesquisa e no cuidado artístico.
Assim, o Professor
Rubens Antonio da Silva Filho é geólogo, historiador (com mestrado nesta área)
e artista plástico, e se debruçou, pelos últimos 20 anos, sobre o Cangaço em
terras baianas, vasculhando fontes da memória oral, documentos, publicações
oficiais, cartas, bilhetes e fotos. Um detalhe é que ele, propositalmente,
resolveu passar à larga dos trabalhos referenciais já publicados sobre o tema,
com o objetivo de evitar um possível viés pelo processamento posterior dos
fatos feito por outros autores. Cabe aqui uma máxima de Anatole France: “a
independência do pensamento é a mais nobre das aristocracias”. Dos
registros fotográficos, selecionou as imagens clássicas do Cangaço e, a partir
delas, desenvolveu e aperfeiçoou o trabalho de retificação e colorização dos
instantâneos. O termo da gestação deste trabalho multifacetado veio com a
publicação, em dois volumes, dos livros: “Cangaço na Bahia - Canção Agalopada ”
e “Cangaço na Bahia - Cavalos do Cão ”.
Como havia me
ensinado o mestre Guimarães Rosa - “o sertão é quando menos se espera”,
numa bela manhã, os livros me chegaram. Confesso que o primeiro contato com as
obras “ao vivo” assusta. Assusta não, impressiona. Explico: palmo e meio de
altura, palmo de comprimento e quase dois dedos de espessura, que traduzindo perfaz
416 páginas num volume e 536 páginas no outro, além do trabalho fotográfico das
capas com fotos de Lampião e seu bando colorizados pelo autor, em belíssima composição
editorial.
Caí na leitura,
portanto. E aqui vão as impressões ligeiras.
O objetivo
deste pequeno texto, ao tempo em que exponho impressões pessoais sobre a obra,
contribuindo para a fortuna crítica, é apontar aspectos que talvez a reclassifique
com um trabalho diferenciado na já extensa bibliografia sobre o assunto. Assim,
aqui me ocuparei somente do “Canção Agalopada”, que, cronologicamente, aborda o
Cangaço na Bahia desde os seus primórdios até o clarear de 1930. Daí para
diante é assunto para o segundo volume, o “Cavalos do Cão”.
O título,
referência à canção homônima de Zé Ramalho, é o ponto de partida de uma
criativa mistura entre letras de canções e texto, sendo todo ele permeado com clássicos
do cancioneiro popular nordestino contemporâneo. Um desavisado pudesse, talvez,
achar que se trata de um “songuebuque” (pronuncia-se “songbook”);
mas logo às primeiras páginas verifica-se que é algo diferente e inusitado na crônica
histórica do Cangaço: é um “texto acancionado”, permeado de trechos selecionados
do universo musical nordestino, notadamente o trabalho do grande cantor,
compositor e instrumentista Zé Ramalho. Exemplo disso, para ilustrar aqui, é o
capítulo referente a Lucas da Feira, ponteado à maneira da melhor sincronicidade
com a canção de Jorge Mautner (gravada por Zé Ramalho), Orquídea Negra. Os
trechos da letra, como epígrafe, dão o tom ao corpo do texto: “a chibata,
o chicote e o açoite”... Aliás, o tristemente célebre Lucas
Evangelista, a exemplo do que está na letra, era um corsário do sol quente,
navegando ao redor do arraial de Feira de Sant’Anna, como a ostentar o látego e
a “bandeira negra da loucura e da pirataria”. A proposta é
interessantíssima: um livro com “trilha sonora”. Um deleite para quem conhece
as canções.
Pincei aqui algumas curiosidades.
Vamos a elas.
Muitos
interessados e estudiosos do tema Cangaço talvez achem que os tratados de ajuda
mútua interestaduais se deram somente onde e quando houve a atuação do cangaço
alcaponiano de Lampião. No entanto, Rubens Antonio, ao apontar a elevada
temperatura na tríplice fronteira entre Bahia, Piauí e Goiás, bem como a
dificuldade de ação das Forças Policiais naqueles ermos, dá notícia do contrato
de prestação mútua de assistência na perseguição de criminosos no entorno daqueles
limites. Ou seja: no Cangaço pré-lampiônico já havia acordos interestaduais de
cooperação dos governos no combate ao banditismo. A contextualização geográfica
é importantíssima para o entendimento espacial dos fatos e as lógicas de deslocamento.
Dizia Euclides da Cunha que “a Geografia prefigura a História”,
e, talvez pensando em facilitar esse entendimento e ampliar a perspectiva de
visão, o Rubens recheou o livro com magníficos mapas, bonitos, bem feitos, de
fácil compreensão e que muito acrescentam à visão dos fatos.
Do que eu já
havia lido da crônica histórica do Cangaço, ficou-me forte impressão que
Lampião, quando entrou na Bahia, ficou intocável e à vontade, sem que as forças policiais oficiais se importassem com a
sua presença por ali. Essa imagem é inclusive reproduzida em filmes sobre a
vida de Lampião. Entretanto, na leitura do “Canção Agalopada” constatei que a
realidade corre longe disso. Já em 1926, tanto a imprensa como a Secretaria de
Polícia e Segurança Pública estão atentos à movimentação de Lampião e seu bando
em Pernambuco, nos beiços do Rio de São Francisco, com grande receio. Até que
se tem notícia de incursão rápida do bando em solo baiano em setembro de 1926,
tendo, inclusive, havido depredações e extorsões no povoado de Orocó. O bando
retorna rapidamente a Pernambuco. A imprensa e a Secretaria de Polícia e Segurança
Pública mantém constante preocupação, e são muitas as notícias de mobilização
de tropas para as fronteiras como medida preventiva a uma eventual nova investida
do bando para o lado de baixo do São Francisco.
É necessário
comentar aqui o resgate de personagens interessantes que, do ostracismo
histórico em que dormiam, despertam nas cores vivas das suas atrocidades e
descalabros, como o caso do Alferes Francisco Gomes de Oliveira, o “Pisa
Macio”. Este militar que, por onde passou, maculou a farda que vestia numa
sucessão de assassinatos, estupros, surras e arbitrariedades. Numa escala
gradativa de maldades, ele faria mais pontos que muitos cangaceiros cruéis. O modus
operandi de Pisa Macio é inacreditável, compartilhado pelo Capitão José
Galdino de Souza ao comandar a chacina do quilômetro 374 da linha férrea de
Bonfim para Juazeiro. Nas páginas do “Canção Agalopada” reverbera o eco dos gritos
dos assassinados covardemente ali.
Na via oposta,
há o resgate de briosos oficiais que, diante dos holofotes sempre voltados para
os cangaceiros, amargaram um doloroso olvido até mesmo pelos pesquisadores e
conhecedores do tema. Cito aqui o exemplo do Tenente Odonel Francisco da Silva,
oficial digno do uniforme que vestia, consciente do seu dever militar e cívico.
Odonel capitaneou o confronto com o bando de Lampião no Arraial das Abóboras, em
1929, onde foi ferido, mas impingiu importante baixa ao grupo de bandidos, pois
dera cabo do experiente cangaceiro Mergulhão, além de ferir um outro. A sua trajetória
honrada como oficial, perfumada de coragem, é descrita no livro, bem como as injustiças sofridas por ele. Cabe ao leitor mergulhar nas páginas e conferir.
Inclusive, a quase totalidade dos oficiais citados no livro tem algo descrito
sobre suas promoções, reformas e destino, à guisa de informações biográficas, o
que em muito facilita a vida do pesquisador.
Uma coisa
prática e acertada na diagramação do livro é a disposição das referências no
inferior da página, o que deixa a leitura mais ágil e dinâmica ao evitar que o
leitor precise deslocar sua atenção para outra parte para conferir uma citação.
Está tudo “aos olhos”, no pé da página.
A leitura do livro
flui como um roteiro de documentário cinematográfico perfilando, num intrincado
tabuleiro de xadrez, as Forças de combate ao Cangaço versus Lampião e
seus sequazes, até o clímax nos derradeiros capítulos. Aqui me esquivarei de
comentá-los, sob pena de jogar água fria e acabar amenizando a temperatura sempre
ascendente da narrativa. Por isso sugiro aos leitores que não pulem os
capítulos, pois ao fazê-lo, correrão o risco de não perceber a tensão
crescente, capítulo a capítulo.
Para que não
me estenda muito (há muita coisa ainda a “falar”), encerrarei por aqui. Não sem
antes parabenizar o autor Rubens Antonio pelo belíssimo trabalho, rico em
novidades, seja em informações, seja em iconografia. Como exemplo, basta citar
aqui o registro documental, fotográfico e histórico de Alcides Fraga de
Mendonça, autor do célebre retrato de Lampião e seu bando em Pombal em 1928, o
único do rei vesgo das caatingas em terras baianas.
Enfim, “Canção
Agalopada” é obra de fôlego, que não serve para as estantes empoeiradas; é – afirmo
categoricamente – para ficar na cabeceira, ao alcance da mão, vez que é indispensável
para consultas constantes, não somente a respeito do cangaço em terras baianas,
que é seu eixo principal, mas também como registro importante, embora
periférico, sobre a História recente da Bahia e dos bastidores políticos de
dois séculos de combate ao banditismo. É obra que, do galope rasante das
primeiras impressões, cavalga para a amplidão. São essas que ultrapassam os séculos
e os continentes.
Exelente Dr Leandro,não li ainda todo conteúdo dos livros,mas folheando-os da pra notar a riqueza,o capricho que o professor Rubens Antonio teve pra nós mostrar a realidade da nossa história,a crueza que foi o cangaço!
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