Depoimento de Jardelina do Nascimento Araújo:
"Sou mais nova que
tudo isso, mas os meus pais e meu tio contaram tudo o que aconteceu para mim...
É que não só eu me interessei, como eles falavam muito daquilo tudo que foi
excepcional... Agora, aqueles velhos já estão mortos e estes jovens, que vieram
bem depois de mim, nem sabem de nada... Alguns, aqui, pensam até que cangaceiro é nome
de passarinho... ou é só folclore... A coisa era tão séria que a gente daqui
tinha até medo de falar de tudo aquilo até pouco tempo atrás... Mas, agora, tem
já tanto tempo... A gente mais velha achava que tinha algum perigo... Mas isso
já passou pra quase todo mundo... Tem gente que ainda nem sei se tem medo, mas
fica meio ressabiada.
Meus pais disseram
que tudo começou com a chegada umas pessoas que batiam e matavam... Ninguém sabia
direito quem eram... Só sabiam isso... Que eram sete. Que eram pessoas esquisitas
que batiam e até matavam outras pessoas... E isto deixava todo mundo assim
muito confuso... É dinheiro? Não tem dinheiro? Apanha. Tem? Apanha também. Então
não é dinheiro? Qualquer coisa apanha! Davam muita pancada de palmatória. Era
tanto bolo nas mãos que nem conta. Ficavam pretas de pancada.
Ninguém sabia de
certo o que estava acontecendo... só que tinha que evitar essas pessoas e
fugir... fugir, quando elas chegassem...
se não desse, tinha que atender o que eles queriam... O que eles
pediam... E isso espalhou como um horror... As pessoas fugiam pros matos...
E chegaram aqui
perto... ali na sede da Fazenda Lagoa do Limo, que daqui dá pra ver... É aquela
que tem gente agora chamando Santa Mônica... mas desse outro nome não sei... Só
uso mesmo como o pessoal todo o nome Lagoa do Limo, desde sempre...
Aqui era tudo bem
diferente... Estas estradas de chão não eram estradas... Eram caminhos
entranhados assim, nas caatingas... Tudo vereda... E as casas eram todas de
madeira cobertas de palha... A sede mesmo da Lagoa do Limo era uma casa de
palha...
E os sete... Eram
sete cangaceiros... Quem os viu disse que andavam sempre com muita pressa...
Andavam muito rápido prá lá e prá cá...
Eram muito brabos,
mas não soube eles não usaram as mulheres... Sei que chegaram e foram ali na
sede da Lagoa do Limo... Depois foram para a baixada... Meu tio João viu eles
descendo lá pra baixada... Quase passou por eles, Acho até que se viram, mas
eles não fizeram nada...
Agora, quando
passaram pela Nega Véia... Ela me contou as coisas que conto agora... Não sei o
nome dela... Acho que era Maria, mas não sei mais... Ela era bem menina na
época, e topou com eles... Eles perguntaram se ela podia trazer água... E a
gente daqui sabia que tinha que obedecer a eles, senão era morte certa...
O que eu mais
lembro o nome, o Azulão, perguntou pra ela que cabelo curto era aquele... Que o
certo era andar de cabelos compridos... e que ela podia morrer por causa
disso... Ele disse:
– Você com esse
cabelo cortado... Olha que eu vou é lhe matar!
Mas eles deixaram
ela ir, porque queriam ela viva pra buscar a água.
- Se você for
buscar água pra gente a gente deixa você viva!
Então ela foi
buscar a tal da água... Tava indo buscar com um pote.
Mais pra cima, ela
topou com os homens que vinham atrás deles... Eles perguntaram ela se ela tinha
visto uns homens diferentes por ali, e ela disse:
– Lampião tá lá em
casa...
Ela estava com
medo de morrer... E eles disseram pra ela que podia descer e levar a água pra
eles... E ela foi...E ela viu quando o chefe dos homens foi seguindo ela com os
outros. E como ele, quando estava chegando perto, ficou mais pra trás, e mais
abaixado... E ele se ergueu atrás de um pé de pau... E como os outros foram se
abaixando e aproximando... E se arrastando... Nega Véia me disse que viu quando o chefe
bateu o pé, como sinal, e rompeu o fogo...
Então, começou
aquele estouro... Ela se jogou no chão, senão tava mortinha...
Daqui lá é longe
uns quinhentos metros, mas meus pais e meu tio ouviram tudo direitinho... E as
balas zuniram aqui por cima, e minha mãe, Alexandrina Maria do Nascimento,
desesperada... Todo mundo se jogou no chão... E meu pai, José Umbelino do
Nascimento, disse:
– Agora pronto! O
Mundo acabou–se!
E foi muito tiro,
por muito tempo. Tiro mesmo. Tiro que passava aqui por cima. Zunia. Ziu! Pá!
Pá! Pá! Pá! Ziu! Minha mãe até ainda colocou a mão no coração, quando contou
pra mim, tanto tempo depois.
A luta foi só ali
embaixo não. Rodou até outros cantos. Era muito medo.
Quando acabou toda
aquela alaúza, ficou muito quieto... Não se ouvia nada... Nem pio de ave...
Nada... Meu tio João Ribeirão da Silva, então, que era de coragem, levantou e
foi caminhando para lá, para a baixa.
Cruzou com os
homens voltando carregando as cabeças deles.
Ele foi até lá e
viu o que viu o que sobrou... Tiraram quase todas as roupas do mortos...
Estavam lá, sem as cabeças e pinicados...
Tinha tanto sangue ali...
Dos sete, três
haviam conseguido fugir.
Outras pessoas
chegaram e também viram os corpos sem cabeça... Estava tudo acabado. As plantas
todas retalhadas de tiro... Um fuzuê...
Meus pais disseram
que depois souberam, pelo homens, que os que morreram eram o que atendia por
Azulão, um tal de Canjica, a Maria Bonita e um que não sei o nome...
Hoje em dia, a
polícia mata e coloca a arma na mão pra incriminar, mas esses não... Nem
precisava. Eram brabos mesmo... Reagiram e mandaram bala... Disseram, os que eram
dos homens da polícia que viram e contaram pros daqui da terra, que essa Maria
morreu de arma na mão... Caiu morta e não largou o revólver... Lutou até o
fim...
Os corpos não
foram enterrados não... Ficaram lá apodrecendo... Comida de urubu...
Tinha um cachorro
aqui que passou um bom tempo indo até lá e comendo deles... Disseram que ele
estava mais gordo que antes por isso... Então, foi certo que os cachorros todos
daqui das redondezas começaram a engordar. Nunca seu viu, nesta vida, eles tão
gordos. Também... Comeram tudo que ficou...
Daqui mesmo, meus
pais viam os urubus todos os dias... E os ossos foram se espalhando...
perdendo... porque o mato também come o que fica. Sobrou nada... Não apareceu
ninguém que desse sepultura não... Até que tudo acabou. Só ficou o medo de que
os companheiros deles, que escaparam, voltassem pra se vingar da gente daqui..."
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Como citar
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